Saturday, February 04, 2006

O FERIADO DA NEVE

IN ILLEO TEMPORE…
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CONTO PUBLICADO NA DEUTSCHE WELLEANTENA DA AMIZADE EM 15.12.2000

O FERIADO DA NEVE

O estudante da Guarda que, como é natural, ouvia as narrações, ora fantasmagóricas, ora com seus pedaços de verdade tais como de “pilha galinhas”, julgamentos do “caloiro” que podiam atingir a pena astronómica de serem condenados a medir a área da cidade académica com um pequenino fósforo, dos seus conterrâneos “doutores” de Coimbra, procuravam, como é óbvio, imitá – los. A “praxe”, o uso académico das “repúblicas”, das “trupes”, das “serenatas” e de tudo quanto por lá se fazia ou se dizia que faziam e, vá lá, tudo bem quando o estudo fazia também parte dessa praxis.
Mas, atenção, há uma coisa em que os “aspirantes a doutores” da velha Egédita eram originais. Era na neve. Porque em Coimbra não nevava tão abundantemente como na Guarda. Não dava para fazer grandes bolas de neve. Para além disso não tinham um ponto alto como a torre sobranceira ao então Liceu Afonso de Albuquerque. Porque a história desse Castelo não foi só a que escreveu D. Sancho I, o pai da Guarda, como quem diz o seu fundador, o trovador que escreveu os versos de “amigo” e para que toda a gente ficasse a saber foram gravados (vá lá ver leitor, se nunca foi à Guarda, é um “ex – libris” da nossa história na cidade mais alta de Portugal) numa rua ali para os lados de S. Vicente e não muito longe da Sé Catedral, “Ai muito me tarda o meu amigo na Guarda”.
É claro que estes trovadores, tal como os prezados leitores muito bem sabem, punham as palavras na boca da amiga, neste caso a “Ribeirinha” de Ribeiro, pois a beldade chamava – se Maria Pais Ribeiro, e, claro, faziam – nas estar sempre a suspirar. Verdade, ficção? Suponho que as duas coisas porque o amor, tão velho como o mundo não mudou na sua essência com o século das velocidades.
Mas voltemos à nossa torre que também viu fazer a cabeça em água ao nosso D. Diniz pelo filho Afonso, depois o quarto de Portugal porque este, irrequieto, fugia para a Guarda para dali arremeter o Castelhano e depois lá estava o pai que tinha de fazer mais uns cabelos brancos para compor as coisas com o rei espanhol. Ora ele que até conseguiu o tratado de Alcanizes de modo a definir fronteiras mas “sempre puxando o rabo à sua sardinha” pois sabem muito bem como eu que a margem direita do côa enriqueceu – nos um bocado. Barrocos ou não o que é certo é que “o rei lavrador”, apegado à terra não queria ver os seus esforços baldados. Mas a mocidade…
Pois como já disse havia algo de original nos estudantes da Guarda. Se havia neve, havia brincadeira. Então instituíram o feriado da neve. A praxe é a praxe. E como lá dizia o estudante orador nos seus ensaios para o futuro “tenho dito”.
Já ouviram a neve? Não. A neve não se ouve, não se sente. A neve adivinha – se com as temperaturas abaixo de zero, não é? E o resto é poesia

Batem leve, levemente
Como quem chama por mim
Será chuva? Será gente?
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…………………………….
Fui ver. A neve caía
Do azul cinzento do céu,
Branca e leve, branca e fria…
- Há quanto tempo a não via!
……………………………


pois também como sabem assim escreveu um dia Augusto Gil que foi governador civil da Guarda e grande poeta português tendo como inspiradora uma tal Adelaide Sampaio por quem estava apaixonado, isto apenas por curiosidade pois que, para o caso, até nem interessa.
Quando comecei a frequentar o liceu da Guarda, terra onde ele foi nado e criado, a sua presença era já apenas assinalada por um monumento numa das praças da cidade onde eu, obrigatoriamente passava todos os dias, com a inscrição “Ao poeta Augusto Gil”, e um jazigo que eu via de vezes em quando sempre que passava junto ao cemitério.
Curiosamente, e por causa da poesia que comecei a esboçar na altura (quem não é poeta aos dezoito anos?), esse bardo fazia – me recordar a neve “branca e fria” como ele dizia e que, aliás, todos nós sentíamos principalmente naquela fase de degelo em que a água a zero graus entrava pelas botas e tudo. Bons tempos de qualquer modo pois que a vida ainda é para nós uma incógnita e esperamos grandes coisas do porvir, enfim, que às vezes até se realizam mas outras não…
Tempos de estudante, de uma terra de província, é certo, mas cuja mentalidade obsessivamente tendia para imitar o tradicional estudante da Lusa – Atenas das serenatas, fados e guitarradas e não só como aliás já mencionei atrás.
Pois bem, vem – me à mente uma partida que os “veteranos” costumavam pregar sempre que nevava intensamente. Recordações que ficam no tempo que se vai esvaindo, que passa, portanto.
Um dos tais dias de grande profusão dos alvos flocozinhos que nos fazem sonhar com natais felizes quando nos encontramos da parte de dentro da janela num ambiente aquecido, aconchegado, e que a terra preta virou branco, cor da pura inocência dos anjos, em que as árvores dos parques viraram perfeitos postais de boas – festas com um pesado manto de alvura, os nossos “heróis” não perderam a oportunidade de dar o tradicional feriado à rapaziada.
No topo do pequeno monte sobranceiro ao liceu e que já conhecem pois já lhes falei dele e da vetusta torre que o D. Sancho mandou construir para vigiar o Castelhano, amassou – se um pedacinho de neve que se pôs a rolar e que, claro, quando chegou ao sopé era enorme. Era grande, mas a força conjunta também não minguava. Não eram tantos os atarefados rapazes como os que construíram o convento de Mafra e que o “Nobel” José Saramago tão arteiramente conta no seu “Memorial do Convento”, mas eram numerosos e por maior que fosse a bola lá a levaram e colocaram numa das entradas.
Os nossos criadores de feriado repetiram, como é evidente, a história daquela bola de neve o número de vezes necessárias e suficientes para que cem por cento das entradas ficassem tapadas. Senão, trabalho escusado, supérfluo, já se vê.
Estava construída a “balda”, mais um feriado a juntar aos outros tantos oficiais que o calendário nos proporciona, uma magnífica obra do homem veterano estratega.

Mudam – se os tempos, mudam – se as vontades
E toda a vida é feita de mudança.

Dizia o Camões e muito bem pois na manhã seguinte quando a rapaziada se preparava, assim um pouco de longe, para gozar o espectáculo viram um grupinho de trabalhadores, de pá e picareta nas mãos e que iniciavam o dia de trabalho às sete da manhã. Pois bem, se o dia de estudo principiava às oito?
Estão admirados? Os nossos rapazinhos que se esfalfaram a puxar pelas enormes bolas de neve também. Mudara o reitor. Era preciso demolir? Mãos à obra… Não precisavam os contínuos de trabalhar para aquecer? Pois muito bem, às oito da manhã havia passagens nos Alpes improvisados para os mil e tal alunos entrarem no liceu e assistirem às aulas sem quebra de rotina sem prejuízos para o futuro.
Era costume, era habitual, era da praxe. Sempre assim se fizera sem nunca ninguém fazer algo para o impedir. Enfim, novos estatutos. E moral da história. Ponto final no feriado da neve. Acabou.
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▪▪▪▪ fim ▪▪▪▪
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A SEGUIR:
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